Foto da Avenida JK, em São Paulo
Mesmo após a crise, coronavírus vai mudar dinâmicas de trabalho

Pandemia força empresas a adotar novos hábitos e revela que modelos de negócios e de gestão devem ser repensados.

Se mesmo com todas as ações do mundo do trabalho que visam conter a propagação do novo coronavírus — como home office, reuniões por conferência ou uso de férias e banco de horas — você se sente perdido, eis uma boa notícia: você não está só. A crise de proporção global surpreendeu empresas dos mais diversos tamanhos e setores, incluindo executivos experientes e consultores. “Se me pedissem hoje para fazer um plano estratégico, estruturar uma empresa na área de inovação, eu não saberia nem me comportar”, diz Fabian Salum, professor de estratégia, modelo de negócios e inovação da Fundação Dom Cabral. “Mesmo com anos de experiência como executivo e mais de uma década me dedicando à academia, me sinto esvaziado.” Ele conta que os empresários com quem tem contato partilham do sentimento: todos estão repensando tudo, de modelo de negócios à relação com a tecnologia.

Em meio a um mar de incertezas, há uma percepção que parece unânime: a crise do coronavírus terá efeitos perenes sobre a forma de trabalhar. A leitura de especialistas ouvidos pela EXAME é a de que o isolamento vai provocar a criação de novos hábitos e comportamentos no universo corporativo, com revisão das reais necessidades de se manter processos e estruturas.

“Algo que pode ter um efeito marcante é a preocupação com as pessoas”, diz Joana Story, professora de gestão na Fundação Getúlio Vargas. “Estamos lidando com uma questão global que tem impacto nas pessoas, e é preciso entender que os modelos de gestão serão diferentes. Não se pode priorizar o lucro neste momento: o gestor deve pensar de forma mais ampla sobre as consequências e impactos sociais para resolver a crise.”

O isolamento social vai provocar a criação de novos hábitos e comportamentos no universo corporativo, com revisão das reais necessidades de se manter processos e estruturas.

Neste contexto, ela destaca o posicionamento de Arne Sorenson, presidente da rede de hotéis Marriott, que anunciou a suspensão de seu salário até o fim do ano, e o corte de 50% no salário de executivos sêniores para enfrentar a crise que pegou em cheio a indústria hoteleira. “É um posicionamento claro e transparente sobre como está o negócio. Poucos líderes são capazes de fazer isso”, diz Story, ponderando que apenas empresas com liquidez suficiente poderiam seguir o exemplo.

A transparência — não apenas nos momentos de crise — pode ser uma nova tônica da gestão de empresas pós-coronavírus, impulsionada pelo trabalho remoto. Em uma dinâmica de condução de processos a distância, é mais difícil controlar as ações de funcionários, o que exige um alinhamento maior entre as equipes e a própria empresa. A ideia é que cada um entenda as ambições da companhia e seja capaz de tomar atitudes para caminhar em direção a um norte comum.

“O mundo vai ser diferente depois do coronavírus, e algumas coisas estão claras: lidar com a imprevisibilidade exige a queda do sistema de comando e controle”, diz Pedro Englert, presidente da escola de negócios StartSe. Ele se refere ao modelo de gestão vigente em grande parte das empresas tradicionais, no qual as decisões são concentradas na alta liderança, que define as estratégias e controla os funcionários. Para Englert, o sistema funciona quando há previsibilidade no mercado, mas perde o sentido em um contexto instável, e com clientes e consumidores cada vez mais poderosos. “Um time que veja tudo o que está acontecendo e que entenda os desafios e objetivos da empresa tem mais capacidade de reagir às dificuldades que se apresentam.”

Esta mudança não se restringe apenas ao aumento da transparência na comunicação da alta liderança com os funcionários, mas abarca uma transformação mais radical das dinâmicas da empresa. Para que isso funcione, Englert aposta em no modelo de sociedade, em que os trabalhadores tenham participação significativa nos lucros e resultados e entendam que as movimentações têm impacto direto em sua remuneração e, consequentemente, na vida pessoal. “Ninguém quer se matar pelo executivo principal, mas por si próprio, trilhando a própria carreira”, diz. “É preciso que as pessoas queiram empreender junto e que tenham informação suficiente para saber tomar riscos.”

As lições das startups

Muitas das alterações previstas para o momento pós-coronavírus já fazem parte da cultura das startups. Diretor de operações da fintech Neon, Jean Sigrist comemora a rápida reação da empresa à pandemia: em três dias, 100% da operação passou a ser executada em home office (que, antes, era permitido apenas algumas vezes por semana). Por lá, a ação de emergência se dividiu em três pilares: proteção às equipes, avaliação de impactos junto a parceiros de negócios e acompanhamento de performance, desempenho e níveis de satisfação. “Uma pesquisa de clima mostrou que o processo foi bem avaliado, o desafio, agora, é fazer a gestão sem contato pessoal”, diz Sigrist.

Por enquanto, o resultado tem sido positivo. A startup já registra aumento de 13% na produtividade da área de suporte ao cliente, além de declarações de funcionários que alegam ter benefícios com a flexibilidade no trabalho. Para o diretor de operações, um dos legados da crise será uma nova visão sobre o home office, que deixará de ser uma possibilidade e se tornará realidade.

Podemos inverter o jogo: a norma passa a ser trabalhar em casa, e o escritório vira uma alternativa, onde as equipes se encontram algumas vezes por semana.

“Os megaescritórios que temos hoje já fazem menos sentido do que fizeram no passado”, diz. “As estruturas, no entanto, não devem desaparecer. Como o contato humano é fundamental para construir relações de confiança, podemos inverter o jogo: a norma passa a ser trabalhar em casa, e o escritório vira uma alternativa, onde as equipes se encontram algumas vezes por semana.”

Ex-sócio da corretora Guide Investimentos e ex-diretor do Itaú, Sigrist entende que é normal que existam diferenças nos tempos de resposta e adaptação entre startups e empresas tradicionais, já que as novas organizações já nascem no mundo digital. Existem, no entanto, mudanças no modelo de pensamento que independem da familiaridade com a digitalização. Salum, da Fundação Dom Cabral, lançou, no último mês de novembro, uma pesquisa sobre tecnologia e impactos sociais e ambientais das startups. “É comum, mesmo entre gestores mais velhos, a mudança mental, muito induzida pelo ambiente”, diz. Segundo ele, o trabalho em ambientes compartilhados e em hubs influenciam em tudo: desde a maneira de se vestir até o entendimento de que a flexibilidade permite ao funcionário a entrega de melhores resultados por promover uma integração mais facilitada entre vida pessoal e profissional.

Salum enxerga características comuns no novo modelo de pensamento, que notou em suas experiências no Vale do Silício. Duas são essenciais: confiança e colaboração. Sobre confiança, ele cita que a aposta no outro é uma das bases da cultura das startups. “É um modelo de autogestão, de liderança autônoma”, diz. “O chefe não supervisiona se o funcionário trabalha de manhã, à tarde ou à noite, ele apenas quer a entrega.” Quanto à colaboração, o professor destaca que as novas empresas focam na ajuda mútua para desenvolver soluções, dando menos espaço à competição. Para ele, este pensamento colaborativo é uma das chaves para resolver a crise. “Não se trata de uma visão de direita ou esquerda, mas de considerar que vivemos em uma humanidade frágil, que sofre um impacto em função de uma variável. É preciso reaprender e replanejar e, para isso, devemos ser, sobretudo, humildes.”

Fonte: EXAME